sábado, 22 de maio de 2010

Santa mega sena

Incumbência desta quarta-feira após o trabalho: jogar na mega sena. Pela primeira vez na vida eu, de espontânea vontade, escolhi meus números, beijei a cartela e rezo, desde então, para ser a sorteada dos milhões. O que me levou até isso parece até uma longa história, mas a vida acontece tão rapidamente, ou não, que poderia ser resumida em apenas um dia. 24 horas seriam suficientes para contabilizar os degraus que subi e o patrimônio que construí. 24 horas? Um segundo.

Cheguei a pensar em desenhar-lhe um rosto e, assim, montar uma santinha para colocá-la num altar e lhe fazer reverências. Mas que santo ceticismo! Nunca fui capaz de desenhos coerentes com a imaginação. No máximo, aquelas pessoas feitas de pauzinhos e pés de bola. Mas que a vontade foi muita foi. Tem gente que acredita em santo milagreiro, por que eu não acreditaria? É... Nunca achei um santo a quem me devotaria, mas dedicaria todos os meus domingos à santa mega sena.

Pensei até em escrever umas linhas, montar uma oração, para agradecer e pedir todos os dias. Imaginei-me como aquelas crianças ajoelhadas ao pé da cama que se reservam uns instantes antes de dormir para lembrar os santos. No entanto, ainda não modifiquei o hábito. Continuo a dedicar estes momentos a mergulhar na leitura prometida de anos: O idiota. O idiota é o livro.

Passo a deitar e sonhar com as mega realizações que faria. Cheguei a imaginar onde seria minha casa, o que compraria, com o que a rechearia. Uma mansão no Lago Sul ou um mega apartamento na 316 Sul? Ah, um novo guarda roupa isso eu faria de imediato. De primeira, reformaria inteiramente meu quarto enorme, com um mega banheiro, um closet imenso, um armário de metros e metros e metros, com muitíssimas gavetas.

Pensei que ainda era um sonho barato. De um gol 0km (que pobreza de pensamento!), me imaginei logo dentro do jipe dos meus sonhos. Eu, bela e magra, na direção, a escolher meu rumo. Com um rayban? Nada. Rayban é para gol 1.0, 2006, “pelado”, como costumo apelidar meu pretinho. Coitado do meu “gol pelado”. Seria trocado no mínimo por um TR4, sem bancos de couro porque sou fumante, e amarelo (porque os únicos belos coches amarelos são jipe e ferrari... mas não, não quereria uma Ferrari).

Cheguei a me imaginar indo a uma agência de viagens e comprando um mega pacote de viagem para a Europa para meus pais e todos os regalos e a boa vida que lhes daria na terceira melhor idade. Minha irmã? Ah, ela já teria boa vida logo no recebimento dos milhões. Meus gatinhos? Teriam a melhor ração do mundo e cobertas. Amor, mimo, colo, cafuné, eles já os têm desde sempre.

Como é bom sonhar e como é terrível acordar. Desperto com meu celular que mais parece um modelo do século passado. Ralé que é já foi anunciada a sua troca como um presente. Não, deixe ele aí, disse, aquele dinheiro que pinga todo 5º dia do mês não merece ser gasto com um aparelho de ligações. Depois de sair da minha gostosa cama, infantil, mas gostosa, olho para meu armariozinho, pego uma roupinha e entro no meu carrinho. Hora de trabalhar, como todos os dias. “Ave mega sena, cheia de graça, a senhora é convosco, bendita sois vós entre os felizardos, e bendito é o fruto da nossa conta. Santa mega sena, mãe dos sonhadores, rogai por nós, assalariados, agora e na hora do nosso desvario. Amém.”

domingo, 9 de maio de 2010

Salada de artistas

Brasileiros, cubanos, argentinos, colombianos, chileno e venezuelano abrem projeto do CCBB

Ana Rita Gondim

Aos que já visitaram a ilha socialista, ir à abertura do projeto Afrolatinidades – Matriz africana da música latina do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), ocorrido na sexta e no sábado, é como revisitar o território de Fidel Castro. Com quatro encontros, com participação de artistas da América Latina, África e Europa, a banda Songoro Consongo conduz todos os shows da série. No primeiro, Tropicalidade caribenha: Cuba e centro América, com o grupo formado por brasileiros, argentinos, colombianos, chileno e venezuelano, subiram ao palco também os cubanos René Ferrer, radicado no Rio de Janeiro, e Pancho Amat.

O grupo abriu o projeto com a canção homônima, o que tornou possível descobrir a pronúncia do nome Songoro Cosongo. Os oito integrantes no palco já impressionam na primeira música, com a variedade de instrumentos e a voz do venezuelano Aléxis José Graterol, que mais parece um cubano devido à familiaridade com a salsa, assim como todo o conjunto. Depois, o bolero Jardín de besos antecede a presença de René Ferrer, que, assim que sobe ao palco, é como transportar o público às ruas de Havana, com seu visual e sua voz forte. Certa vez, em território castrista, uma amiga dissera que a beleza da voz de todos os nativos cubanos pode ter explicação no consumo de rum e charutos. Na apresentação, a teoria ganhou ainda mais sentido.

Além da voz, René anima a plateia com sua alegria e simpatia – presentes do início ao fim por todos os artistas. De sua autoria, ele e o grupo apresentam Como en cada mañana e Ochún, cantadas sempre sorrindo e acompanhadas de sua ginga caribenha. Songoro Cosongo chama a atenção pela versatilidade dos músicos, os quais quase todos tocam mais de um instrumento. O chileno Arturo Cussen lidera o show de uma hora e meia, com um português quase impecável – o sotaque é apenas perceptível em raras palavras –, como o próprio Pancho Amat ressalta mais à frente.

Os dreadlocks de René Ferrer dão lugar aos sapatos bicolores e ao chapéu habitual de Pancho Amat, considerado mundialmente o maior intérprete do tres cubano, uma derivação do violão com três pares de cordas duplas. Em estilo bastante diferente ao conterrâneo anterior, tanto em gênero, como no visual e na faixa etária, Pancho dá um show literalmente com seu instrumento. A figura do compositor e arranjador encanta pela habilidade dos dedos ágeis nas cordas duplas, pelo apreço que demonstra pelos músicos que o acompanham e pela paixão musical que transborda em suas pernas inquietas e tresloucadas, que parecem não suportar tamanha emoção. De Pancho, eles cantam Llegó el tresero, Tal vez a los 50 e En el Café.

O grupo “sui generis”, cunhado dessa forma por Pacho Amat por ser um conjunto de música cubana sem ter um cubano sequer em sua formação, anuncia o fim do show com Lágrimas negras, de Miguel Matamoros. Os cubanos, na plateia e no palco, entram em êxtase e fazem coro com a canção. Todos os espectadores se levantam e alguns se entusiasmam ainda mais. Ao fim, o público bate palmas querendo bis e Arturo Cussen já avisa que haviam se preparado para este momento e apresenta Maracujá, composição da banda de múltiplas nacionalidades. A letra casa com o espetáculo, uma salada de artistas latinoamericanos: “maracujá, abacaxi, melancia, limão, misturado com cachaça fica muito bom”. A impressão é que rum e cachaça dão um belo e frutífero casamento.



Publicado no site Diversão & Arte