segunda-feira, 15 de julho de 2013

Esteja em paz, meu anjo.

Assim como o sábado, o domingo foi salgado, talvez até mais. Compramos flores e viajamos até a casa da Val para tentar confortar sua família. Depois, pensei que nós mesmos talvez tenhamos ido para buscar o nosso próprio conforto. Sabíamos da distância, mas fazer aquele caminho reforçou o lado guerreira do nosso anjo. Perdemos-nos na estrada que ela seguia todos os dias.

Primeiro, deixamos as flores na igreja, local que ela nos falava tanto do trabalho que fazia aos finais de semana e como se sentia feliz por fazer. Soubemos de mais detalhes do acidente. Lágrimas explodiram dos meus olhos. Não suportei imaginar a dor que possa ter sentido. Dali, seguimos para sua casa. Logo à entrada, encontramos uma de suas irmãs. Reconheci rapidamente pela semelhança demasiada e pela blusa que vestia.Vi-me vestida em Neusa. Vi Neusa vestida de mim.

Entramos já emocionados em sua casa, que estava repleta de familiares. Conhecemos seu pai, sua madrasta, seu marido, seus irmãos, primos, cunhados. Assustamo-nos com o tamanho do seu filho. A criança que ia à nossa casa já era um rapaz. E será um homem por necessidade da vida ou consequência da falta dela. Choramos juntos. Meus olhos tinham vida própria. Um mar que não se acabava. A cada canto da casa que eu olhava, reconhecia a nossa casa. Móveis, quadros, enfeites, caixas, bolsas. A nossa casa tinha uma filial.

Em 12 anos, Val recebeu muita coisa nossa. E ver tantas daquelas coisas na sala, no seu quarto, no banheiro, na cozinha, me comoveu. Coisas antigas, coisas recentes. Precisei ir ao banheiro para tentar me acalmar. Enxugo meu rosto com uma toalha familiar. Choro ainda mais. Pergunto a sua madrasta se aquele era o quarto onde dormia. Ela entra comigo e é tanta surpresa... Alguém de sua família estava deitada em sua cama enrolada no edredon que me enrolou por alguns anos. No móvel ao lado, tantas caixinhas que antes guardavam meus brincos, hoje guardavam os seus e seus grampos. Atrás da porta, um cabideiro, onde também encontrei bolsas que antes carregavam minhas utilidades. Dona Mira (não sei se assim escreve seu nome) fica um bom tempo comigo. Fala do carinho que Val sentia por mim. Aquele rosto enrugado parecia me reconhecer pelo que a Val falava, sentia-se à vontade por ver a pessoa que antes era apenas um nome verbalizado.

Era emocionante ver a Val em cada detalhe, era emocionante ver a nós mesmos em cada detalhe. Na parede de sua sala, vi seus salmos impressos pregados no mural que antes expunham fotos das pessoas que eu amava em meu quarto. Tantos quadrinhos que minha mãe decorou a nossa casa faziam a casa da Val cada vez mais familiar. Chamam-nos para comer. Almoçamos em sua casa. Na cozinha, utensílios que minha própria mãe pintou. Pude sentir o carinho da Val na sua casa. A forma como nos agradecia por cada coisa que nós dávamos a ela era possível de ser sentido em sua casa.

Foi incrível conhecer Seu Ramiro, seu pai, e “Manel”, seu marido. Como eu ouvia esses nomes! Foi bom conhecer os donos daqueles nomes e daquelas histórias que ela nos contava. Abraço conforta. Mas abraço faz chorar. Abraço divide a dor. Abraço transmite a dor. Os abraços da entrada são diferentes dos abraços da despedida. O abraço de Anderson, seu filho, foi o mais apertado, o mais demorado. Deixei que ele afrouxasse primeiramente seus braços para só depois me afastar.

É dolorosa a segunda-feira. Não ouvir a sua chave abrir a porta e não ouvir um dos primeiros “bom dia” do dia são dolorosos. Não comer o seu almoço, a farofa que fazia que eu tanto gostava e que sabia que fazia mais quando sabia que eu almoçaria em casa. Não existirão mais os almoços em casa, pelo menos, nem tão cedo. Não existe mais a pessoa doce que andava e se mexia como um dos nossos gatinhos pela casa. Não vou mais ver aquele sorriso doce. Não vou mais procurá-la em seu quarto.

Ver mais um dia o seu acidente ser manchete dos jornais também dói. Preciso escrever como que para não externar apenas lágrimas. Preciso dizer ao mundo quem foi a Val, quem foi o ser humano entre aqueles 11 mortos. É como se eu precisasse humanizar o seu nome divulgado nas páginas dos jornais. Cheguei a dizer algumas vezes que parece que as pessoas viram santas quando morrem. Disse isso porque duvidava que as pessoas fossem tão boas em vida como diziam após a morte. A Val não era uma santa. A Val era um anjo.

Não existe nada de ruim que tenha feito em nossa casa ou para nós. Val era verdadeiramente um ser humano. Há muitas pessoas que não são seres humanos, no verdadeiro sentido da palavra humanidade. Ela morreu em sua humanidade. Ela morreu indo fazer o bem, para dar um pouco do pouco e do muito que tinha. Obrigada, Val. O mundo agradece ter tido entre milhões um ser humano grande e lindo como você. Eu agradeço o carinho, a paciência, a doçura, o zelo que teve por nós em todos esses dias. Sinto-me honrada e privilegiada por ter tê-la conhecido e convivido por mais de uma década com uma pessoa que falta palavras para descrever. Esteja em paz, meu anjo.

Nossa Val, nosso anjo!

sábado, 13 de julho de 2013

Até amanhã, Val!


Hoje o sábado acordou salgado. Acordo cedo. Recebo a notícia: Val faleceu esta noite. Claro que a gente não se dá conta de pronto. Val não estava doente. Val esteve conosco dois dias atrás. Um grave acidente levou o anjo de todos os dias por 12 anos desta casa. Aos poucos, me dou conta que não verei mais aquele gato em forma de gente. Era uma das coisas que eu dizia a ela. A pessoa mais discreta que conheci na vida era incapaz de qualquer incômodo. A gente, às vezes, se assustava com a sua presença porque, de tão silenciosa, não nos dávamos conta que ela já estava ali a cuidar da gente. Não que sua presença não fosse marcante, era por isso mesmo demais marcante.

Val acreditava em Deus, acreditava em sua religião, acreditava em ajudar o próximo. Por esses motivos, não veio trabalhar na sexta-feira, e não viria na segunda, porque viajaria por vários e vários quilômetros para ajudar a população de uma das regiões mais pobres deste país. Ela faleceu no meio do caminho, em direção ao que acreditava, para fazer o bem a quem não conhecia, com sua doçura, sua fé, seus dons culinários.

Eu também costumava dizer que era um dos seres mais evoluídos que conheci em meus 32 anos. Val não faltava, se atrasava era devido ao maravilhoso transporte público deste país. Morava em Planaltina de Goiás e acordava por volta das 4h para cuidar de uma família que não era a sua. Uma palavra que talvez possa chegar perto de quem era a Val era “cuidar”. Val não reclamava da vida por mais que sua coluna e sua perna doessem constantemente, por mais que seu marido e seu filho lhe dessem preocupações, por mais que o dinheiro não desse para o que precisava. Era silenciosa, mas bastava ficar um pouco ao seu lado que teria conversa por horas. Assim, descobríamos algumas de suas aflições e quando estava doente. Por volta das 15h, ela ia embora para cuidar de sua família.

Sempre tento almoçar em casa. E, durante a semana, almocei fora alguns dias, mas, na quinta-feira, fiz questão de almoçar com meus pais e comer o almoço feito pela Val. Após o almoço era quando eu me despedia da Val. Sempre dizia: “até amanhã, Val” ou “ bom fim de semana, Val. Até segunda”. Na quinta, eu falei “até amanhã, Val”. Esqueci que ela não viria no dia seguinte.

A casa está triste. O sábado acordou salgado. A segunda-feira será atípica. Os outros dias serão mais vazios e ainda mais silenciosos. Nesta casa, Val deixou apenas coisas boas, boas lembranças, muito carinho, bastante zelo, uma bíblia e suas anotações. Espero que não tenha sentido dor, que não tenha sofrido. Pelo menos isso. Espero que não tenha havido um ser humano que lhe tenha feito mal. Val só merecia as coisas boas da vida, apesar de a vida ser meio que injusta ou aparentemente injusta. Vai com Deus, Val. Acho que você gostaria de ouvir isso. Eu digo: até amanhã. Val.