segunda-feira, 27 de abril de 2015

A pele que habito

Após uma noite mal dormida, acordo desnorteada. Decido fazer meus pés para a feiura não ser completa. Termino. A televisão ligada. Passa o noticiário do terremoto no Nepal. No mesmo instante, sinto como se uma rolha estourasse de uma garrafa, mas estoura da minha garganta. Um nó volta a apertar. A pressão liberada desgoverna meus olhos. Meu rosto se encharca entre soluços. Aquele terremoto me alcançou, tremeu minhas bases. Na noite anterior, no sofá, arrancava cascas do que eu não mais suportava como se eu pudesse limar ou limpar minha pele daquilo que voltava a se espalhar. Logo pela manhã, vejo o resultado da minha tentativa. Há algum tempo, eu havia escolhido colocar uma rolha na minha garganta para que eu levasse a vida de forma mais leve e tentasse me aceitar. Mas não é possível ser assim por tanto tempo. Senti que precisava estornar o que entrava em débito ao longo de alguns dias. Saiu um choro desgovernado, que me acompanhou na mesa, debaixo do chuveiro, ao me vestir, ao guiar meu carro, ao chegar à casa dos meus pais. Me acalmei por um tempo, mas ele retornou e me acompanhou ao voltar para casa. Com as perguntas, eu apenas respondia: "não aguento mais essa psoríase". Foi um domingo triste para mim e para o Nepal. Chorei pelo país e chorei por mim. Chorei mais por mim porque eu não conseguia deixar que aquela tragédia fosse maior do que eu. Chorei mais por mim porque nem o pior que ocorria tão distante de mim e pior do que ocorria comigo amenizava uma dor tão estourada e menor. Apenas consegui fazer uma analogia dos terremotos. Precisamos de base. E, às vezes, não tenho base. Deixo tudo estremecer para tentar reconstruir depois. Há sempre um novo dia. Como aprendi, um dia de cada vez. Chorei como não chorava há algum tempo. Criei subterfúgios para esquecer, brevemente, o que minha pele estampa. Me distraio no trabalho, brinco com as pessoas. Saio para dançar e rir. Mas quem eu sou me acompanha, assim como a pele que habito. Já me disseram, após conhecer a doença, que ela não é lá essa coisa toda que digo. Já me disseram para eu não avisar porque, após ser vista, não é tão ruim como eu fiz parecer. Acho engraçado porque quem disse essas coisas não a tem e não me conhece. Antes, meus quilinhos, pneuzinhos, celulite, me incomodavam. Hoje isso não é nada. Tudo que eu queria hoje era ter uma pele normal. Hoje tudo que eu queria era ser normal. Já me incomodei muito por ser tão branca. Quando adolescente, ao ir para a praia, minha mãe brincava que eu queria ser o Michael Jackson ao contrário. Hoje me aceito branca, faço piadas com flashes, falta de maquiagem. Mas não há flashes ou maquiagem que disfarcem ou me façam sentir melhor com as feridas. É como se elas existissem a partir da pele e me perfurassem. Não é uma dor apenas externa ou que incomoda externamente. Ela dói lá dentro, ela não me dá livre-arbítrio, ela me impede que eu me reconheça. Senti, no início do ano, a esperança de vê-la regredir após tratamento médico e férias na praia. Mas logo veio o desemprego, e ele logo se foi. Sentia-me bem. Mas uma leve coceira começou a surgir junto com pequenos sinais em outras partes do corpo. Não quis deixar isso me incomodar. Mas, num domingo de folga, o tremor me surpreendeu e eu me deixei inundar. Surpreendentemente, dormi bem. Um novo dia começa, mas nada mudou. A pele que habito continua a me machucar e continua machucada. Mas coloquei novamente a rolha no lugar. Não há mais tremores, por enquanto. Colocarei meu vestido comprido ou minha calça jeans e seguirei minha vida, sempre tentando ser mais leve, com meus prazeres, minhas fugas e meus subterfúgios, até o próximo terremoto...

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Obrigada, Miss!

Abaixo, segue o e-mail que me tirou lágrimas ontem no meio da tarde de trabalho. Não contive a dor que senti por ela e pela dor que compartilhamos. Senti alegria e tristeza. Alegria porque a minha intenção ao ter escrito os textos que ela mencionou foi exatamente pôr para fora a minha dor e poder "tocar" quem possa ser "tocado". Tristeza porque, de verdade, não queria que a minha dor fosse a dor de mais ninguém. Mas, assim como ela, é confortável não nos sentirmos só neste mundo, ainda que estejamos sós neste mundo.



Oi, Ana Rita !

Meu nome é Misllene, e tomei a liberdade de te escrever depois de ver um post em seu blog, o qual tinha o titulo "Dia Mundial da Psoríase".

Desculpa por incomoda-lá, mas, por acaso, eu encontrei seu blog ontem à noite e, desde então, não parei de ler (a propósito, você escreve como ninguém). O motivo do meu contato foi pelo simples fato de eu me enquadrar no seu texto sobre psoríase. Eu o li bem no dia mais difícil, e você me ajudou muito dividindo seus pensamentos comigo.

Me enquadrei em seu texto porque descobri a doença há dois anos e, desde então, meu "mundo caiu". Eu, que antes era a menina do riso, dos sonhos, me transformei em "caco" desde o diagnóstico. Quando a dermatologista falou o que eu tinha, estava com 19 anos, namorando, tinha iniciado a faculdade, e minha vida era uma maravilha. De repente, tudo mudou... As lesões são nas palmas das minhas mãos. No início, eram fracas, eu estava "aceitando", mas, depois de meses, as lesões cresceram, começaram a coçar, sangrar e a me trancar da sociedade... Não vou contar tudo como aconteceu porque você deve saber bem como ela funciona. Só quero dizer que minha vida, aos poucos, ficou HORRÍVEL.

Hoje eu tenho 21 anos, continuo minha faculdade e acabei terminando meu namoro. Me julgaram por fazer isso, mas eu não quero que ninguém sofra comigo, e acho que ele merece alguém que seja capaz de pegar em sua mão e fazer um carinho, coisa que nunca poderei fazer... Mas não estou aqui para desabafar sobre relacionamentos, mas dizer o quanto essa "coisinha" nos atrapalha. São dois anos vivendo com minhas mãos nos bolsos, fugindo dos olhares horrorosos que me alcançam diariamente, dois anos sem poder pegar em nada, sem tocar em pessoas que gosto, são dois anos fugindo de todo mundo e querendo constantemente DESAPARECER.

Confesso que eu nunca fui de reclamar. Eu sempre fui de ter o riso fácil, cheia de amigos e vivendo tudo em sua totalidade, mas a coisa mudou. Ontem foi o meu limite. Ontem foi o primeiro dia que comecei o uso de uma pomada nova, e minha mãe estava me ajudando a passar. Estava doendo demais, e eu comecei a chorar, ela chorou e logo meu pai e minha irmã ficaram em volta da minha cama, todos se segurando para não chorar comigo, todos olhando minhas mãos todas abertas. Chorei mais compulsivamente ainda, nem era mais pela dor. Costumo dizer que ela dói mais que a pele, dói a alma, o coração e todo o meu ser.... E foi aí que entrei no Google e te encontrei (ainda bem).

Às vezes, eu tento me lembrar como eu era antes disso e sempre acabo aos prantos. Hoje em dia, é uma dificuldade em tudo, para pegar alguma coisa, para fazer as coisas mais simples. Não consigo lavar meus cabelos, bater palmas, segurar algo com firmeza, porque tudo isso dói. Na faculdade, é uma luta. Uma vez fazendo uma prova, minhas mãos começaram simplesmente a sangrar. Fora as vezes que nem consigo escrever. Não consigo, ao menos, comer na frente das pessoas porque elas sempre me olham estranho ou perguntam o que aconteceu comigo. Sou violinista desde os 12 anos e isso também me foi tirado. Ela conseguiu levar até meu instrumento....

São tantas as coisas que deixei de fazer... A psoríase não afetou apenas minha pele, afetou minha mente, minha vida, meus dias. Ela levou as coisas que eu mais gostava de fazer, ela levou a oportunidade que eu tinha de tocar em alguém. Levou a felicidade que eu tinha de sair de casa, levou a minha vontade de viver. Eu sei que existem pessoas piores que eu, com doenças mais graves. Não estou sendo hipócrita, mas a minha também dói. Ouço gente falando o tempo inteiro que isso é "fichinha" comparado a outras coisas. E eu sei, mas, ainda sim, não anula o fato de eu querer sumir a todo o momento.

Desculpas pelas minhas palavras, mas quando li seu texto, pela primeira vez, não me senti só. Encontrei alguém que me entende, que sabe o que é se olhar no espelho e desejar ser como antes. Obrigada pelas suas belas palavras. Você me ajudou mesmo e agora eu só quero ter CORAGEM. Coragem de viver minha vida que esta só começando porque, definitivamente, eu tenho medo de viver agora. A realidade é que, se tudo terminasse aqui, já estaria bom. Porque, às vezes, eu sinto que é IMPOSSÍVEL conviver com isso.

Enfim, se você leu, obrigada por ter paciência comigo. Obrigada mesmo por me "ouvir". Eu só queria ter alguém para dividir a dor. Tem muita gente que me apoia, mas eu só queria falar com quem sabe o que é realmente ter isso, alguém que também já pensou em fugir deste mundo. Alguém que, assim como eu, não inveja carros, dinheiro, fama, mas inveja PELE. Sim, a pele. São horas e horas olhando para as mãos de outras pessoas e perguntando "por que eu não posso ser assim?". Horas olhando para os pés dos outros. Isso mesmo, pés, porque, há três meses, nasceram manchas em meus pés, e descobri que já é um começo dela de novo em outra área. E aí eu me pergunto: como viver assim? Se você descobrir, por favor, me avise. E, se reinventarem um mundo sem isso, me informe porque este mundo aqui esta inabitável depois dessa doença.

Beijos,
Miss