quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Chão

Entre momentos de choro insano, aprende-se a chorar em silêncio. Aprende-se a chorar sem lágrimas, aprende-se a chorar sorrindo. Os olhos calam-se diante de sua invisibilidade, de sua inutilidade diante de um mundo em ascensão. Esparrama-se no chão inúmeras vezes. E é ele que te apara para que não vá mais fundo. O chão te é íntimo, mas do chão quer distância. Mas ele continua a te receber. Apesar dos pés feridos e que sangram, eles precisam seguir, ainda que as pernas falhem. Elas bambeiam, mas ordenam suas bases machucadas. Não se sabe se as feridas vieram das pernas ou da intimidade com o chão. Ela se consola com a amizade com o chão e se revolta. Pede que o chão seja apenas lembrança. Ele insiste em ser presente. Mas, um dia, ele há de ser apenas impulso para passos ascendentes e se acenarão em mútuo agradecimento.

sábado, 25 de novembro de 2017

Não te querem

Te querem leve
Te querem plena
Te querem só sorriso
Te querem só agradecida

Não te querem questionando
Não te querem em franqalhos
Não te querem entre meios sorrisos
Não te querem reclamando

Te querem sóbria
Te querem normal
Te querem santa
Te querem perfeita

Não te querem boêmia
Não te querem fora do padrão
Não te querem fora de casa
Não te querem mal-acabada

Te querem de aço
Te querem pronta
Te querem animada
Mas não tão animada

Não te querem frágil
Não te querem enquanto
Não te querem indiferente
Tampouco deprimida

Te querem
Não te querem
O mundo não te quer

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Carta para Pandinha

Você apareceu no casarão de meus avós, em Areia (PB). Conquistou os cuidados de mamãe, que lhe dava banhos e retirava suas pulgas. Aos poucos, mamãe e papai nos contavam como melhorava, comia mais e ficava espertinha. Ao precisarem retornar a Brasília, não encontraram com quem você pudesse ficar e receber cuidados. Então, eles a trouxeram de avião para nossa casa.

Com os olhos azuis, brincávamos que você herdou os olhos do meu avó materno. De todos os felinos que tivemos, você pareceu a mais sapeca, a mais danada, que mais quebrou coisas na casa. Quando chegou, no início de dezembro, mamãe queria doá-la por receio de sua asma e alergia. Mas, logo, você tomou conta de nossos corações, e jamais que a deixaríamos. Madalena, que parecia não aceitar mais outro gato, se afeiçoou a você, a adotou e virou mãezona. Ficou mais dócil e deixava os pedacinhos de carne para você roubar.

Mas, desde o dia 13, você decidiu conhecer o mundo e deixou um buraco em nossos corações. Não consegui trabalhar naquele sábado. Fizemos de tudo. Papai desceu várias vezes ao dia por vários dias. Colocamos suas fotos em todos os elevadores de todos os prédios da quadra. Pedi ajuda de amigos e da Pro Anima para divulgar suas fotos com nossos contatos. Alguns vizinhos se compadeceram. Mas, até hoje, não temos notícias suas. Duas ligações me deram esperança, mas não era você.

Em casa, precisava e preciso parecer forte. Mamãe, com dor de cabeça, sentia e sente falta da sua “boneca”. Papai, pelos cantos, deixava e deixa escorrer lágrimas. Eu chorava fora de casa e choro ao escrever esta carta.

É difícil acordar e me arrumar para o trabalho e não vê-la doidinha correndo pela casa e me atrapalhando ao arrumar a cama. Aquela energia toda me deixava doida. É difícil não ver você e Madalena correndo uma atrás da outra logo cedo e à noite, quando eu tentava dormir. Madalena também sente sua falta, parece assumir alguns hábitos seus (tira o ralo do meu banheiro, bebe água do box após tomarmos banho, corre pela casa) e está mais dengosa do que nunca.

É difícil usar as sapatilhas com os lacinhos pela metade porque você comeu. É difícil chegar à casa e reduzir a velocidade do carro sempre achando que você pode estar em algum cantinho pelo qual vou passar. Sonho em encontrá-la e fazer a alegria da família com você em meus braços. É difícil ver os pratinhos de porcelana que papai e mamãe compraram por causa da sua acne felina, e hoje só Madalena bebe água e come neles. É difícil não ver mais você provocando Madoca e a chamando para brincar.

Você faz uma falta danada, bichinha. Torcemos para que esteja bem, para que alguém a tenha encontrado e esteja lhe dando o amor que nós lhe dávamos. Caso contrário, que esteja com nosso Tomtom, nosso Miuzinho e meu Pretinho.


quinta-feira, 20 de abril de 2017

Fala-se que ninguém está sozinho… Mas é só nos entremeios é que há algumas gentes… Não se é autossuficiente, mas tampouco se está sempre de mãos entrelaçadas. Nas questões mais fundas, há solitude. Nos momentos mais difíceis, são raros os ouvidos. No mais das vezes, são sempre tão poucos ou quase nenhuns. Há rara gratidão, há rara companhia, há rara partilha. Não há olhos para olhos que babam. Não há palavra para aquele que silencia. Não há colo para quem não é visto. No fechar de olhos, está se sempre só. Há subterfúgios para se pensar que não se está só. Mas é se sempre só. São mais vazios, zeros, buracos, engodos do que verdades, planícies, uns e plenitudes. Mas aprende-se a se ser só, aprende-se a sentir-se menos só, reconhece-se os que nos fazem menos sós e agradece-se a companhia rara de momentos sós.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Caixa de reminiscências

A gente já sabe, mas é preciso insistir depois de mais um erro. É preciso deixar o passado no passado. É preciso passar a chave na gaveta do que já foi um dia e jogá-la fora. Nada do que foi será possível retornar. A gente se engana com o que é verbalizado, com gestos e atitudes. A gente imagina um olhar, uma exclamação ou umas reticências onde não há além de um ponto final colocado lá atrás. É uma mania de esperar que ainda persista o que de bom já existiu. É um vício achar que ainda poderia ser especial para alguém. Fantasias são criadas para preencher não se sabe o quê. E as ilusões e desilusões foram fabricadas, não há culpados, além de si mesmo pela loucura ou cegueira. E a dor é inevitável. É preciso parar de abrir a caixa de reminiscências. O que lá existe foi vivido e sentido por um, mais ninguém. Fez parte de um, fez ser quem se é, mas está lá atrás e deve-se deixar que assim permaneça. As memórias são perigosas, deveriam apenas fazer sorrir pelo que foi vivido e não atravancar o que se pode ainda viver. Vontades que devem ser conservadas caladas, inauditas e guardadas entre poeira e emaranhado de teias de aranha na gaveta do passado.