terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Meu pretinho

Sábado à tarde. Agora me recordo que estava vestida com uma camiseta estampada de gatinhos. Havia sido a primeira roupa que havia escolhido porque acordei com o celular sem bateria e precisei ligar o computador para ver que horas eram. 10h30. Fiquei que nem louca pela casa porque eu havia me programado para renovar minha Carteira Nacional de Habilitação. O lugar só estaria aberto até as 11h. Enfiei a roupa e saí correndo. O carro estava cheio de lama da noite anterior porque havia atolado quando ia a um samba com um amigo. Não achei vaga, não deu tempo. Passava das 11h. Fui, então, à casa dos meus pais. Deixei meu carro para o Zé, um ex-porteiro que vai ao prédio lavar os carros aos sábados, dar um jeito naquilo. Então, gasto meu tempo com a família. A baianidade me bate. Almoçamos acarajé, caldo de sururu e lula à dorê. Voltamos para a cada dos meus pais. Zé ainda não havia terminado de lavar a imundície do carro. Enrolamos, e ele termina. Minha mãe me pede para ir com ela comprar uns potes de tempero na 411 Sul. Entre as duas lojas da mesma rua que ela precisa ir, me apaixono por um serzinho preto numa gaiola. Coloco a mão dentro, e ele imediatamente encosta, se esfrega e pede carinho. Me apaixono ainda mais. Minha mãe entra na loja ao lado. Eu volto. Peço para abrir a gaiola e pegá-lo no colo. A paixão é ainda maior. Amor recíproco. Vamos ao outro lado da rua marcar sobrancelha para o final do ano. Aquele felino pretinho de olhos amarelos não me sai da cabeça. Saio da loja. “Mãe, eu preciso adotar aquele gatinho”. Volto, adoto. “Só isso?” Assino um papel, pego sua carteirinha de vacina e vou com ele feliz da vida para o carro. Beijo, abraço, agarro. Enquanto dirijo, minha mãe o leva em seu colo. Paro debaixo do meu prédio. Tomo ele de volta em meus braços ansiosa para subir e ele conhecer a nova casa e a irmãzinha Madalena. Madá fica desconfiada e brava por não ser mais a dona da casa. Fico encantada com a leoa que eu não sabia que tinha e com aquele pequenininho descobrindo a casa, se escondendo atrás da geladeira quando Madá ia brava pra perto dele. Domingo. Decido dar banho nos dois. Saio para almoçar. Passo o restante do dia todo em casa. A braveza de Madoca ainda não dava sinais de amansar. Desde que mudei de apartamento, Madá descobriu o forro debaixo da cama. Desde que chegou à casa, meu pretinho adotou a minha cama como dele. Segunda-feira. Saio para trabalhar. Almoço em casa para ver o novo bebê e como a dupla ia se entendendo. À noite, passo rapidamente na casa dos meus pais e vou para a minha casa. Percebo que, aos poucos, Madá cede. Começam a correr pela casa. Pretinho adora um ratinho com guizo pendurado na porta da cozinha e a bolinha que Madá tanto também curte. Durmo absolutamente nada. Aquele ratinho com guizo faz barulho a noite inteira. Me levanto diversas vezes para ver se estava tudo bem com os dois. Terça-feira. Acordo antes das 7h porque é dia de diarista e preciso tirar as toalhas do varal. Apresento o novo morador à diarista. Agarro e beijo Madalena e José (ou Zé ou Pretinho ou Zé Pretinho). Me despeço. Pretinho, assim como Madá, parecem querer ir comigo. Fecho a porta. Vou para o trabalho. Volto para casa na hora do almoço. Madá aparece de pronto. Nada do meu pretinho. Mexo no rato com guizo e nada. Olho minha cama. Debaixo da cama. Abro os armários. Vejo atrás da geladeira. Vejo no banheiro. Abro o sofá. Acho meu pretinho. Balanço. Ele não se mexe. Vou para o outro lado e puxo ele. Imóvel, duro, os olhinhos em outro mundo, a linguinha para fora. Começo a alisá-lo. Ele está sujo de cocô. Começo a me dar conta. Começo a gritar. Coloco ele no colo. Me sujo. Meus olhos começam a jorrar lágrimas. Não acredito. “Volta, meu pretinho”. Seu corpinho vai ficando mais frio. Ligo, aos prantos, para algumas pessoas. Meus pais chegam. Meu pai quer me ajudar a fazer algo com o corpinho do pretinho. Choro ainda mais ao vê-lo num saco plástico. Não olho mais. Minha mãe tenta me consolar e fala para eu tomar banho. Acendo um cigarro. Vou para o banho. Meus olhos não se acalmam. Não almoço. Não como nada. Agarro e beijo Madá. Me arrumo. Vou para o trabalho. Não paro de chorar. Não paro de lembrar do meu bichinho sapeca pela casa e imóvel nos meus braços. Não foram nem três dias completos de alegria e carinho que ele me deu. E é tanta tristeza. Tristeza pela brevidade. Tristeza por tanto amor. Tristeza por uma despedida desnecessária. Mal tive tempo de tirar fotos suas. De tão pretinho, achava que, durante o dia no próximo fim de semana, conseguiria fazer imagens que captassem melhor seus traços, suas patinhas grandes que me faziam imaginar se tornar um gato grande, sua barriguinha grisalha. Ouvi tão pouco seu miado. Descobri tão pouco daquele gatinho que mal se punha a mão e ele se entregava. Mal tive tempo de ganhar suas mordidinhas e arranhados. Mas tive a alegria de quase três dias por um serzinho que me apaixonou à primeira vista, assim como foi com Madá. Tive a alegria de ver aquele anjinho deitado em minha cama e se derreter quando me via, de me agarrar quando fomos juntos para debaixo do chuveiro, de vê-lo provocando Madalena para brincar, de dar a notícia aos amigos de que havia adotado mais um filhote. Obrigada, meu pretinho, mas voltar para casa não terá a mesma alegria.




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