quinta-feira, 18 de junho de 2015

Dois episódios

Dói sentir, literalmente na pele, o que é ser diferente, causar asco ou outra sensação aos olhos e ao tato dos outros. Eu que nunca vi qualquer diferença ao me apaixonar por um cadeirante ou negro, percebo que minhas lesões me diferenciam. Há três anos com a doença, ainda não havia sentido preconceito, rejeição ou ouvido uma brincadeira de mau gosto. Talvez porque ela tenha se espalhado. Talvez porque eu não esconda que a tenho e talvez porque, nem que eu queira, não há mais como escondê-la.

Na primeira ocasião, um rapaz que dançava comigo a noite inteira passou a mão pelos meus cotovelos. Com uma interrogação estampada em seu rosto, respondi: "sou assim da cintura para baixo". Não houve mais dança. Não houve mais conversa. O sumiço foi imediato. Banquei-me de forte. Continuei a me divertir. Na volta para casa, o choro foi doído. Não pelo rapaz, mas por sentir, pela primeira vez, o que também sou, o que faz parte da minha vida, o que pode ser a ausência ou não de um relacionamento, o que as feridas já possam ter afastado de mim sem eu ter percebido ou que possam vir a afastar. Depois, pensei que foi melhor a pessoa ter logo se afastado. Hoje, penso que minha doença pode ser uma seleção natural, pois pessoas pequenas não se aproximarão. Mas hoje posso dizer como é se sentir rejeitada, como uma característica, uma pele, uma doença, pode ser capaz de distanciar as pessoas.

Noutro momento, em um ambiente supostamente de pessoas esclarecidas e despidas de, pelo menos, menos preconceitos, minhas mãos foram alvo de uma brincadeira - é só o que posso pensar da pergunta. Não, minhas lesões não estão mais só da cintura para baixo, além dos cotovelos. Elas desceram para os meus pés e subiram para as minhas mãos, meus braços e meu couro cabeludo. Em meu lugar na bancada, a pessoa se aproximou e, ao olhar minhas mãos, questionou: "você andou se batendo?". Chocada com a pergunta, pois não havia nem percebido que ele havia reparado em minhas mãos, não soube dar outra resposta. "Não, tenho psoríase". Novamente. Não houve mais conversa. Não houve um pedido de desculpa. A pessoa, assim que terminou o que veio fazer próximo a mim, se distanciou. Dessa vez, não chorei. Apenas me distanciei.

Não sei se colecionarei episódios como esses ou piores. Não sei se um dia me aceitarei ou me adaptarei. Dói-me mais porque nunca me atraí por aparências. Jamais uma condição ou característica me afastou de conhecer alguém ou me fez capaz de uma piada. Também me envolvi com cabeludos, carecas, gordinhos, magros, malhados, mais velhos, mais novos. Nunca as molduras atraíram meus olhos ou meus sentimentos. Mas hoje minha pele me aparta dos normais. Sou vítima do bumerangue que nunca joguei.

Tem sido difícil ser forte. Disseram-me um dia que as minhas lesões viraram o centro das minhas atenções. Tive que concordar. É tão difícil não ser. É impossível não senti-las ou não vê-las o tempo inteiro. Dormir e tomar banho nunca mais foram a mesma coisa. Usar um anel ou vestir uma calça jeans tampouco. Vestido, só de meia-calça fio 80. Das mãos, dos cotovelos e braços, me desligo um pouco se não não haveria como. Brinco que devo ser uma das grandes consumidoras do Vanish. Pijamas e roupa de cama precisam sempre do auxílio dele na máquina de lavar para retirar as marcas de sangue. Ao dormir, é constante algumas lágrimas escorrerem dos olhos. A solidão é uma companheira, às vezes, bem-vinda, noutras, assustadora.

Para muitos, isso tudo pode ser uma grande bobagem. Mas, assim como minha pele se tornou sensível, a dona dela também. A sensibilidade está fora e dentro. É como se a psoríase tivesse alcançado meus olhos, embaçando-os. Sinto como se a vida perdesse o brilho, e eu junto. À crise no meu saldo bancário somou-se a falta de vontade de me cuidar, me divertir e conhecer pessoas. Fechei-me em meu casulo. Enclausurei-me em meu mundo. "Encaranguejei-me" para me proteger de rejeições e brincadeiras. Está difícil ser inteira.






Um comentário:

Misllene disse...

Suas palavras me deixam "sem palavras".
Me descrevem perfeitamente.
Um desabafo que deveria ser lido para o mundo, e aquelas benditas pessoas pequenas.
Te admiro demais. Força, Sempre.