sábado, 7 de junho de 2008

Imbróglio dos setes

Seguia a minha vida quando, de repente, não sei como, tropecei. Mas não foi um tropeço numa pedrinha. Bati a cabeça numa árvore enorme que estava à minha frente que não pude enxergar tamanha era a minha vontade de seguir o meu caminho sem desvios. Era uma árvore linda, majestosa, robusta. Até hoje me pergunto como não pude enxergá-la e não ter podido me afastar e, logo após, voltar ao meu caminho. Mas não, na minha teimosia de continuar onde estava, fui de encontro a algo mais forte do que a minha vontade.

E levei um tombo tão majestoso quanto à árvore que permaneceu ali, imóvel, sem balançar um só galho, sem deixar cair uma só folhinha. E eu dormi por alguns bons momentos. Desse cochilo, quis jamais acordar. Foram os mais belos delírios de uma vida irreal. E, ao mesmo tempo, foram tão reais que os hematomas permanecem por todo o meu corpo. É como se eles existissem para me lembrar que foram somente sonhos oriundos de uma terrível queda.

Sinto insistentemente a dor do tombo, mas a saudade daqueles sonhos mais lindos teima em superar as feridas. Nos delírios, fui a lugares desconhecidos, distantes, extraordinários. Conheci outros mundos, experimentei sensações, vi diferenças. E imaginei porque eu estaria ali com todos aqueles sonhos. Seria eu desejando aquilo tudo, a vida me mostrando que posso realizar meus sonhos ou simplesmente sonhos? Não sei e, talvez, jamais saberei...

Dizem que as quedas são necessárias para sabermos nos levantar e que, dali em diante, seremos mais fortes ao nos depararmos com outra árvore. De repente, em uma iminência de novo tombo, eu seja tão mais forte que nem um elefante me derrubará do meu caminho. Enquanto tratava minhas feridas, esbarrei com um estrangeiro que já havia cruzado meu caminho algumas vezes, antes mesmo de sofrer o tombo. E ele me cochichou ao ouvido: “descobriste a verdade do perder para ganhar”.

No momento, achei que esse imigrante reapareceu muito antes do que deveria ou eu mesma tendo a não querer acreditar na verdade surda que me grita. Não sei se a verdade foram os sonhos ou são os hematomas. É uma bola-de-neve de impressões que não consigo decodificar. E dizem também que o tempo é o sábio que nos fará superar e enxergar tudo mais claramente. Mas que malditas quedas e maldito tempo que nos machucam e não sabemos curar! Meu caminho é tão curto que preciso decifrar logo para saber se entro à esquerda, viro à direita, faço o retorno ou vou reto toda a vida. E meu caminho é tão longo que não quero mais o castigo dos hematomas sem saber por que vieram.

Quiçá os sonhos junto à dor de depois foram um sinal de: sonhe, mas acorde; viaje, mas retorne; voe, mas ponha os pés no chão. E qual a graça de sonhar e depois permanecer acordado, de viajar e passar o tempo todo no mesmo lugar, de voar e os pés nunca mais levantarem? Talvez porque precise estar fincada à realidade para, em breve, voar ainda mais alto? Isso dá uma impressão tão estranha quanto tudo o que foi. Por mais que ainda possa haver muitos passos à frente, a impressão que tenho é que sonhar algo melhor seja impossível.

Após algum tempo, sinto, inesperadamente, um abraço carinhoso de longe. Viro-me para saber quem era, mas não a conhecia. Era uma fada que me trazia a solidariedade distante, de haver sentido necessidade de ajudar a cuidar das minhas feridas, pois, assim, também o fazia consigo há algum tempo. Sinto, desde o primeiro abraço, que ela, pequenina, me acompanha, sentada em meu ombro, como se soubesse o bem que ela me faz. A companhia da vivência e sofrimento semelhantes.

Aqui, parece fazer sentido o “perder para ganhar”, mas ainda não traz toda a carga pesada de perda e ganho. Ainda não consigo traduzir o sussurro do solitário que perambula pelo mundo e me visita esporadicamente. Será que perdi estes sonhos para eles virem novos e ainda mais belos em breve? Mas me apeguei a eles e não sei se quero me libertar. Será que os sonhos foram para mim a minha terceira perna de que fala G.H.?

“assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar”, confidenciou-me G.H. antes mesmo de eu cair, mas parecia pressentir o que podia me acontecer.

Se, pra mim, tudo não passou de uma terceira perna, é tudo ainda pior. É uma morte ainda maior. É uma morte de mim. Mas se, tampouco for a terceira perna, é luto de toda forma, pois parte de mim foi embora. E o que se faz quando parte de si se quebra, desmorona, parte, desintegra, vai embora e diz adeus? Conformar-me? O diabo é que sempre odiei esta palavra: conformar-se. Na terceira, segunda, milésima pessoa, tudo bem, mas na primeira? Respeitar é uma coisa, entender e aceitar são bem diferentes.

Costumo dizer que... Vamos colocar um homem, uma mulher e um chifre. O homem está insatisfeito e envolve uma terceira pessoa na história. Entende-se que ele tenha feito isso, mas não justifica a sua atitude. E costumo dizer isso em relação a várias coisas sobre as quais refleti alguns ou zilhões de instantes. Havia um exemplo melhor, mas achei preferível relatar um caso comum para não incomodar. E, assim, sou: analiso daqui, reflito dali, examino acolá. Mas, quanto mais faço isso, mais hipóteses surgem. Seria melhor não pensar nada? E como não pensar nada de nada em nada por nada?

Sonhos? Terceira perna? Perder para ganhar? Há ainda tantas hipóteses. Existem os famigerados ditados: “a vida dá voltas”, “aqui se faz, aqui se paga” e “quem ri por último, ri melhor”. Acredito, em parte, porque já fui vítima deles nas mais ínfimas circunstâncias. Sobre a outra parte, não comento porque acho detestável a alegria sobre o sofrimento alheio. E, pasmem, poucos pensam assim. Um dia, li que alguém achou saborosa a idéia de haver se tornado o prato principal enquanto as migalhas haviam sido desprezadas. E é nessas horas que o ser humano me enoja.

Aos poucos, a idéia do ganho após a perda parece fazer sentido. Palavras doces, gestos gentis, carinhos gratuitos, novos amigos, reencontros de velhos amigos, situações inesperadas. Presentes vieram depois da privação. Demorei a perceber isso, mas não há como negar que a vida me surpreende dia após dia. Subitamente, paro para pensar em reconhecimento pelo que fiz enquanto sonhei. Foram sonhos em que me dei e me doei inteiramente, mas ou foram somente sonhos e não há porque gratificação, ou porque não devemos jamais esperar reconhecimento do que quer que seja.

Pois, então, torno-me uma grega que dança pelo prazer de dançar sem aplausos, como me disse o estrangeiro: “Somos educados num regime de gratificações. Elas vêm de Deus ou da sociedade. Isto um dia me fez pensar o oposto, e associando agora à consideração de ser uma estrutura aberta, pergunto se o homem não será algo parecido com o grego do filme: quando dança, não quer aplausos. Um grego quando dança é porque está contente. Pergunto: não será o homem algo que quando vive não precisa de aplausos, vive porque tem prazer de viver, mesmo com dor?”

Chego até a pensar que posso não ter me esbofeteado numa sólida árvore, mas num delicado arbusto em que meus pés se enroscaram e, num desequilíbrio, caí. E os sonhos não vieram da trombada, mas de um encantamento súbito e crescente gerado pela manipulação de pequenos galhos enquanto eu dormia. Desacordada, fez de mim um fantoche ou um vudu, em que direcionou meus atos e sentimentos para algo nada genuíno e que acreditei ser autêntico.

Sendo o arbusto co-autor da minha queda e forjador do meu fascínio, decido seguir reto toda a vida. Jogo para o acostamento as mentiras, as mediocridades, as pequenezas, as baixezas, as traições e as lágrimas derramadas por uma farsa, por um personagem de um filme de mau gosto, por um filme mal dirigido. Continuo pela minha estrada de tijolos amarelos em busca da mágica da vida, dançando um tango sem aplausos em que posso ouvir o que possa ser dito em Buenos Aires e com a esperança de que o homem de lata ou a árvore majestosa ou o delicado arbusto tenha um coração de verdade.

3 comentários:

Unknown disse...

Deslumbrei-me com a leitura de "Imbróglio dos setes". Você tem a verve dos areienses de melhor cepa. Sou de lá também e escrevo nos sites WWW.sertaoinformado.com.br e WWW.portalsousa.com.br. Nada assemelhado ao cunho literário que se observa na poética prosa de sua lavra. Parece-me que se Zá Américo não tiver sucessor adquirirá equivalente substituta! Um abraço do conterrâneo lá de Barragem de Vaca Brava:

Floriano Camelo de Souza Neto - florianoadvogado@bol.com.br

Tamara Eleutério disse...

Ana que tanto me põe a pensar (adoro). Prefiro pensar que essa árvore robusta talvez fosse do modelo ipê - desses que depois de derrubado serve otimamente pra lápis. Escreve aí!

Continuo a buscas por respostas... Em breve te mando uns links.

Gustavo Pozzobon disse...

Uma pedra? Não. No meio do caminho tinha uma árvore. Belo proseado, prima. Lerei todos, um por um.
Escreve devagar aí hehe.
Beijos pra você e pra família.