sábado, 28 de junho de 2008

Minha cidade invisível

Após tantas viagens, finalmente descubro a minha cidade. Reconheço-a de longe ao ver um arco-íris que a envolve de ponta a ponta. É uma ilhota à altura da linha equatorial. Seus dias são sempre belos, de um céu maravilhosamente azul, com esparsas nuvens que quebram a sua monotonia e de uma areia branca onde jamais se queimam os pés.

Nesta cidade, trabalha-se no que se gosta. Não é preciso gostar do que se faz. E, sempre que desejável, pode-se alternar entre vários serviços para que o tédio não estrague a harmonia do lugar. Não há salário, não há férias, não há 13º, não há competição. Todos têm o que precisam na exata medida de sua necessidade.

Acorda-se todos os dias com o revoar e o assobiar dos bem-te-vis, passa-se o dia com o samba de Cartola e dorme-se com a bossa-nova de Vinicius de Moraes. Sua temperatura não exige agasalho, mas, à noite, uma fina chuva esfria para que os amantes se aconcheguem e durmam sempre abraçados para manter o sentimento aquecido ou para sentirem a necessidade de fazerem as pazes após um desentendimento.

Lá, fala-se espanhol, inglês, russo, italiano, alemão, esperanto, francês, enfim, qualquer que seja a língua de sua origem. Todos se entendem e, depois de lá permanecidos, falam o idioma que bem entenderem na hora que desejarem. Come-se a comida que desejar fazer, mas há abundância de natureza para todos os lados. Animais convivem em consonância com todos. Eles transitam onde o instinto lhes direcionar, onde o cheiro do alimento os agradar, onde houver mãos que lhes acariciem.

Nela, homens e mulheres têm a aparência que quiserem. Um dia, podem ser ruivos, noutros, negros; assim como delgados e rechonchudos; altos e baixos; ter cabelos encaracolados e escorridos; olhos claros e escuros. Isso não lhes atrapalha a identidade. Todos se reconhecem pela essência, pois educaram seus olhos para a janela da alma.

O amor não é líquido ou volúvel como em outras cidades mais modernas. Desde sua existência, cada um encontra o seu par a seu momento. E não há pressa ou compromisso formal. O acordo é feito com a primeira troca de olhares no reconhecimento de um por o outro. Não existe traição, troca ou cobiça. Eles assumem o outro pela pureza do sentimento, pela compreensão de suas características e pela sabedoria de sofrimento anterior.

A cidade não é perfeita como parece. Todos se esforçam pelo bem-estar geral, pela construção da harmonia, pela compreensão das diferenças, pela exigência da felicidade do outro. Tudo isso eles aprenderam com as passagens em outras cidades. Nenhum habitante da ilha nasceu por lá. Chegam lá os que buscam por ela. Antes de lá atracarem, eles trabalharam por dinheiro, tiveram inúmeros parceiros, experimentaram o sexo pelo prazer imediato, usaram máscaras para agradar ou se esconder, tiveram suas frustrações, decepções, sofrimentos, dores e lágrimas.

Cansados de aparências, de dor e da busca incansável da verdade, eles partem de suas cidades como nômades, pois é sabido que quem deseja chegar à ilha, mais cedo ou mais tarde, encontra-a. Às vezes, demora-se mais ou menos para encontrá-la, mas é para aguçar a curiosidade, a ansiedade e a alegria de se deparar com o sonho realizável.

Para que os malefícios de outras cidades não a contamine, o paraíso esconde seus mistérios. O chão do oceano que a circunda é constituído de pedregulhos afiados que impedem a passagem da mentira, da hipocrisia, da falsidade, da dissimulação. Os poucos indignos que lá chegam não conseguem pisar a areia fina que cobre a cidade.

Esta não é Eutrópia, Leandra, Zobeide, entre tantas outras cidades de Italo Calvino. É Bonsonho de uma estrangeira que vive em sua ilha todas as noites, além das visitas que realiza durante o dia em que não suporta a cidade visível. De Calvino, ela pega emprestado o sentido das viagens:

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
(CALVINO, Italo. As cidades invisíveis, p. 150)

Um comentário:

Unknown disse...

Essa sua cidade imaginária é melhor que a Pasárgada de Manoel Bandeira. Gostaria de poder procurá-la. É melhor usufruir o que tem lá do que "ser amigo do Rei".