domingo, 14 de setembro de 2008

Ensaio sobre a cegueira

Ensaio sobre a cegueira é um bom filme, assim como o alívio que se sente ao sair da sala do cinema. Poder enxergar e ver que está tudo em “ordem” proporcionam uma sensação anteriormente desconhecida. É como se por algumas horas tivéssemos sentido o que é ver um clarão onde antes havia verde, azul, amarelo. É confortante ver carros estacionados em suas vagas e corredores limpos, sem mau cheiro.

Entristece-se, além das condições em que são obrigados a viver, com o tiranismo surgido em terríveis circunstâncias. Usurpa-se um poder não-legítimo em prol de uma satisfação inexistente. É a baixeza e a amoralidade do ser humano em seu grau mais baixo. Cheguei a me regozijar por o mundo não ser como aquele da tela, mas engano meu. O caos é tanto quanto, apenas as peças estão trocadas.

Enquanto o “normal” no mundo é enxergar, ali ele era o “anormal”. Mas, no plano real, há outras deficiências, outras cegueiras, outras ignorâncias, que nos fazem colocar uma venda para propositalmente não vermos e, assim, fingirmos que certas coisas não existem. Um poder não-legítimo é usurpado todos os dias em vários cantos do mundo.

A diferença é que não sentiremos o prazer de voltarmos a enxergar assim como o personagem alegra-se em voltar a ver formas e cores. Seu júbilo contagia e conforta quem está na poltrona, mas incomoda ver quem sempre esteve naquela condição não ter a esperança como os outros. Ele foi e sempre será cego, e seu desejo pode não mais ser sonhado agora por ser visto e poder, conseqüentemente, ser recusado.

Minha descrença no mundo e no ser humano fez-me pensar que talvez fosse melhor não enxergar. Quiçá fosse melhor não conhecer as pessoas pela sua altura, pelo seu peso, pela sua cor, mas pelo que elas nos transmitem. Não enxergar a fome, as doenças, os maus tratos, talvez fosse mais confortável.

Engano meu novamente. Tudo isso, creio, é passível de ser sentido. A falta de um sentido aguça outros. Percebemos da mesma forma ou pior. E não enxergar não é solução para menos incômodos. Há tantos que enxergam, mas não enxergam. Não enxergam a miséria ao lado, uma carroça que emperra o trânsito, uma família acampada embaixo de um viaduto, o senhor dobrado à entrada do Conjunto Nacional sempre com sorriso no rosto, os olhos desconsolados de uma criança que estende a mão.

Agradeço enxergar, agradeço poder ver as coisas e as pessoas ao meu redor, ver um vôo de um pássaro, ver o azul do céu, ver as águas intermináveis de uma cachoeira, ver as ondas incansáveis da imensidão do mar, ver lágrimas e sorrisos. Agradeço ver o que tantos outros não vêem apesar da impotência diante de tanta maldade, mediocridade, miséria. Que a amaurose de tantos não me infeccione e eu continue sempre a ver a crueza do mundo, pois o belo é fácil de ser visto.

P.S.: Confesso não ter lido o livro de José Saramago. Confesso minha deficiência na irritação com a forma distinta de escrever do autor, minha cegueira por não perseverar com a pontuação inculta e com diálogos que me impacientaram em não discernir se de narrador e de quais personagens. Um dia, quiçá, abrirei os olhos. 5, 4, 3, 2, 1...

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