sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Dulces sueños

O céu já bem negro, deito. À espera do sono que me acalenta, imagino. Em vez de um teto maciço e branco, invento um buraco por onde vejo a escuridão do céu com seus pontinhos brilhantes. Penso se cada estrela está ali fixa todas as noites em toda a existência do mundo. Será que elas não mudam de lugar, ou caem com a velhice, ou se renovam a cada noite, ou são anciãs e imortais e que nós vemo-las iguais às vistas pelos homens das cavernas?

Fico nessas delongas todas as vezes em que o mergulho no sono me parece difícil ou até impossível. E, constantemente, os sonhos acordados são tão bons que esqueço de dormir e prefiro permanecer alerta para viver as fantasias. Mas lembrar que amanhã tudo começa novamente me faz agarrar o travesseiro e enrolar-me no edredom como que chamando o sono que não vem. Quero sonhar e ao mesmo tempo preciso dormir para acordar cedo e enfrentar mais um dia de trabalho.

Depois de horas de um chá-de-cama que o sono me dá, desisto. Invento personagens, bolo histórias, regozijo-me das delícias que vivo. Invento que estou na garupa de Che Guevara de braços abertos com o vento no rosto e chego à bela Buenos Aires. Hablo un español perfecto. Alan Pauls me convida para um tango e me fala da relação intrínseca triste que há entre a dança e o seu país.

Como se fosse possível conhecer toda a Argentina em apenas alguns segundos, vôo para outro sonho. Sozinha em um jipe com a melhor trilha sonora de todos os tempos, chego à Havana. Ressuscito todo o Buena Vista Social Club como se estivessem a cantar para me receber. Encanto-me e é uma alegria profunda. Como sair de um sonho desses? Vou às praias paradisíacas da ilha e as cores do céu e do mar se confundem, se encontram, são uma só. A pele ardida de sol é um deleite ímpar na minha real fantasia.

Do outro lado da tela, ele me diz gostar da França, da Paris de Piaf. Yo hablo de mi Buenos Aires querido, de mi Cuba que yo rezo para que Fidel no muera mientras sueño. Invento um país em que todos os outros são miniaturas e cabem todos em um só. Encontramo-nos em um café, não de Cortázar, não entre cronópios, famas e esperanças. Sentamo-nos, sim, em um café, com um jardim de rosas perfumadas atrás, com músicos de salsa e tango que se revezam ao lado direito, vemos a vida acontecer em distintos costumes ao lado esquerdo, e, à frente, o infinito nos traz mar, morros, montanhas.

Ele fuma o charuto cubano enrolado nas cochas de las chicas. Eu bebo uma tradicional sangria espanhola. Ele me fala um francês colado ao ouvido que não quer jamais sair dali. Eu, à la dançarina de flamenco, falo baixinho em italiano que podemos sonhar o quanto quisermos. Embriagamo-nos de sonhos, viagens, vôos, pernoites. Um tremelique distante desperta Ana Rita e o país das maravilhas. Inebriada, acordo como aquela canção de Zeca Baleiro. “Hoje eu acordei com uma vontade danada de mandar flores ao delegado, de bater na porta do vizinho e desejar bom dia, de beijar o português da padaria”.

Este é o óleo que mantém a engrenagem em ordem, para evitar que as peças envelheçam, que a boca azede, que o coração se empedre, que a visão se converta numa neblina, que a mente se apegue ao passado. São tantos os sonhos que cada um poderia ser transcrito em um imenso tomo, com histórias, diálogos e personagens completamente diversos de cada volume. De pé, pronta para seguir para o trabalho, abro a porta do carro, mas uma buzina me impede de adentrar o veículo. Che Guevara, em sua motocicleta, pega minha mão e diz: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.

Mal dá o recado, desaparece. Entro no carro e pego a direção do trabalho. Sinto saudades dos sonhos e, em particular, daquele brasileiro que fala francês, com ar de espanhol, com os pés de tango, que fuma um charuto cubano, e que aceitaria sonhar comigo nas pirâmides do Egito, na Cordilheira dos Andes, encontrarmo-nos com elfos nas rochas da Islândia, nadar junto a tubarões no Recife, fazer um rally nos desertos da África, que ele seria Shah Jahan e tivesse construído o Taj Mahal em minha memória. O encantamento onírico me alegra por todo o dia para encontrá-lo novamente em minhas viagens no negrume do céu.

Para um amigo a quem confidenciei, com quem troquei e reinventei sonhos...

4 comentários:

Anônimo disse...

Esse post me lembrou uma música...

Sonhei e fui, sinais de sim,
Amor sem fim, céu de capim,
E eu olhando a vida olhar pra mim.

Sonhei e fui, mar de cristal,
Sol, água e sal, meu ancestral,
E eu tão singular me vi plural.

Sonhei e fui, num sonho à toa,
Uma leoa, água de Goa,
E eu rogando ao tempo:
- Me perdoa
E eu rogando ao tempo:
- Me perdoa

Sonhei pra mim, tanta paixão,
De grão em grão, verso e canção,
E eu tentando nunca ouvir em vão.

Sonhei, senti, sol na lagoa,
Céu de Lisboa, nuvem que voa,
E um país maior que uma pessoa.

Sonhei e vim, mares de Espanha,
Terras estranhas, lendas tamanhas,
E eu subi sorrindo esta montanha.
E eu subi sorrindo esta montanha.

Sonhei, enfim, e vejo agora,
Beijo de Aurora, ventos lá fora,
E eu cantando a Deus e indo embora.
E eu cantando a Deus e indo embora.

Sonhei, Lenine...

Unknown disse...

Os sonhos de vigília podem estimular uma "oniranálise" igualmente imaginativa.

Anônimo disse...

Rita, para mim este foi o melhor post que você escreveu. Não queria que ele tivesse fim nunca, porque fiquei daqui, do outro lado da tela, vivendo seu sonho e sonhando em sonhar tudo isso acordada. O que seria da vida real e cotidiana sem fantasias e sonhos, sonhos sonhados no sono ou quando ainda estamos acordadas. Acho que são poucas as pessoas no mundo que conseguem sonhar acordada e você é uma delas. Obrigada pelo post.
Beijos,
Flávia.

Ana Rita Gondim disse...

Melhor do que escrever foi sonhar!! :) Uma pena que o "homenageado" só se manifestou diretamente a mim, mas importa que ele gostou...